domingo, 7 de março de 2010

Vigiar, educar e responsabilizar crianças é preciso.

O que fazer com os nossos filhos quando estes evidenciam, com a tortura reiterada dos seus pares, o lado mais negro do ser humano?

Leonor Paiva watson
Na semana passada, Portugal acordou com a notícia de um menino, 12 anos, que se suicidou após sofrer agressões continuadas por parte de colegas. Terá dito: "A mim não me batem mais". A ele, de facto, não lhe batem mais. A ele, de facto, a vida não bate mais. O país, meio acordado do pesadelo, inquire a medo: o que se passou? Como pôde isto acontecer? Escreveram-se notícias, fizeram-se reportagens, encheram-se programas matinais com o assunto. E muita gente falou, e muita gente avançou soluções sobre como prevenir situações destas. Prevenir. Mas poucas pessoas sugeriram como actuar depois de já terem acontecido. Se, por um lado, aquele menino podia ser o nosso filho; por outro, os outros que o agrediram também podiam ser os nossos filhos. E ninguém arrisca. Abriu-se um inquérito e, de repente, começamos a ouvir, vezes de mais, as palavras "alegadamente" e "eventuais". Meio acordado, em choque, o país enfrenta a dura verdade - que amiúde nega - de que as crianças, os pré-adolescentes, os adolescentes não são anjinhos, desprovidos da dimensão mais negra do ser-se humano. Enfrenta, a medo, que a crueza e a crueldade serão tão naturais no animal humano como a compaixão e a empatia. E que numa criança tudo isto está em evidência de forma mais intensa, porque a auto-regulação aprende-se com o tempo, com a vida, com os exemplos. Com a Educação, enfim. Então, o que falhou aqui? Em Mirandela, e no Mundo inteiro onde haja um recreio com crianças? Vigilância. "São precisos mais vigilantes nos recreios. O recreio de uma escola é tão importante como a sala de aula. É nos recreios que estas coisas acontecem. E depois são precisos mais psicólogos nas escolas", avançou o psiquiatra Daniel Sampaio. Resolverá este problema toda a vigilância do Mundo? "É necessário que a escola, a partir dos alunos, desenhe um programa de actuação para evitar a violência entre pares. É sensibilizar, é responsabilizar, é educar. Estas situações evitam-se através das testemunhas que não podem permitir, não podem silenciar", continuou. O Leandro não viveu para esse admirável mundo novo onde a justiça se impõe ao medo. As águas do rio Tua engoliram a aflição, o desespero, a ausência de esperança deste menino. O país quis saber e parte da comunidade local respondeu titubeante. A Associação de Pais , por exemplo, começou por dizer que não havia registos de violência na escola, admitindo depois que, afinal, não era bem assim. A escola ficou-se por poucas palavras. Demasiado poucas... Volvida uma semana, surgem os especialistas. Para uns, a culpa é da escola e da associação de pais; para outros, é dos pais que não aparecem na escola quando são convocados para resolver o comportamento dos filhos; para outros ainda, é do porteiro. E todos avançam soluções para o futuro, para que não se repita. Mas, entretanto, morreu um menino, o Leandro; e ninguém, ainda, falou, dos colegas que o maltrataram. A culpa parece ser de todos (tenham ou não tenham condições de trabalho), menos de quem o maltratou. Ainda ninguém perguntou: o que fazer com estes miúdos? "Se forem identificados têm que ser punidos. Devem ser punidos de acordo com o regulamento da escola. A escola tem que ter um regulamento que contemple estas situações. Uma solução deverá ser o trabalho comunitário. Trabalho para a escola. É preciso responsabilizar ", concluiu. Responsabilizar, a palavra temida Responsabilizar. Parece ser esta a palavra que custa tanto dizer relativamente às crianças, aos pré-adolescentes, aos adolescentes. Colocar panos quentes - branquear - parece ser mais fácil do que desmontar esta ideia de que os meninos são anjos. "A representação que os adultos fazem das crianças é que estas são felizes e boazinhas", justificou Paula Cristina Martins, investigadora da Escola de Psicologia, da Universidade do Minho. Esta psicóloga toca no ponto nevrálgico: "As crianças são pessoas. Ponto. E pessoas que vivem de uma forma muito mais intensa as suas emoções - tanto as negativas como as positivas -, porque lhes faltam mecanismos de regulação". Ou seja, falta-lhes filtro, estão em estado bruto, verdadeiro, puro, sendo que pureza não significa apenas generosidade. É ao longo de uma vida que vamos aprendendo a civilização, por oposição à animalidade de que, na base, somos feitos. Todos. "Começa-se pela hetero-regulação, isto é, são os pais, os educadores, que regulam o comportamento do jovem; depois passa-se a uma fase de co-regulação, em que o menor vai aprendendo com o outro como se controlar. Finalmente, chega-se à auto-regulação, isto é, aquele, sozinho, consegue decidir e encontrar o seu equilíbrio", explicou esta investigadora. O equilíbrio para contornar um dos nossos instintos mais básicos e difíceis: a agressividade, a necessidade de ter e proteger território. De ter poder. A base do bullying Poder. Uma criança, um pré-adolescente, um adolescente são pessoas a nascer para o grupo. Enquanto que em casa têm o seu papel definido, fora de portas são apenas um entre milhares. Nada mais natural do que, instintivamente, engendrar formas de contrariar esse anonimato. Há uma necessidade de afirmação. No seu lado mais negro, essa afirmação faz-se à custa do outro. Da troça, da ridicularização, da humilhação, da ameaça, da força física. "Há um elemento ou um grupo que identifica outro como sendo mais vulnerável - ou porque usa óculos, ou porque é mais gordinho ou magrinho, ou porque se veste de forma diferente - e vai agir sobre essa vulnerabilidade. Utilizando a derrubação, fica no centro das atenções. Dá-lhe status, poder ", evidenciou D'Jamila Garcia, psicóloga e a cumprir doutoramento nesta área. Se o alvo não se defende, a tendência é repetir-se outra vez. E outra e outra. Até porque, a dada altura, isto engloba todos os que estão à volta, quanto mais não seja, porque ninguém denuncia. "Acabam por auxiliar o agressor, ou com reforço positivo, quando puxam pela vítima ou avisam o agressor de que ela vai ali a passar; ou quando silenciam, por entenderem que não têm força para intervir ou desvalorizarem o sofrimento da vítima. Para estes, é só na brincadeira. A dada altura, isto já não pára - a não ser que haja intervenção dos adultos - porque os papéis já estão definidos e já se espera aquele comportamento do agressor", alertou aquela investigadora. As consequências são devastadoras: o agressor aprende a relacionar-se na base da humilhação; e a vítima enfrenta o desespero, o medo, o isolamento, a vergonha, traduzidos muitas vezes no absentismo para escapar à tortura. No caso do Leandro, o suicídio. "Explicados os mecanismos e as causas, não nos percamos nelas. Preocupemo-nos com a solução", pediu D'Jamila Garcia. Solucionar: tolerância Zero Solucionar passará por, primeiro, perceber que as crianças não são anjos, antes seres em construção. E ocorrem três atitudes em desuso: vigilância, educação, responsabilização. Passará, depois, por envolver a comunidade inteira. "É preciso, de facto, uma aldeia inteira para educar uma criança", avança Ana Maria Tomás Almeida, investigadora da Universidade do Minho. "Todo o contexto e todas as circunstâncias são para ter em conta. A tolerância deve ser zero e, para isso, temos que implicar a escola, os pais e os miúdos numa procura de responsabilização. Mostrar-lhes o que fazem e as consequências do que fazem. Mas não pode passar apenas pela contenção, pela proibição, porque, depois, quando não estão perto do adulto, voltam a repetir comportamentos mais agressivos. Tem que passar por uma educação que os inclua numa procura de responsabilização", afirmou a investigadora. Basicamente, "a necessidade de afirmação tem que assumir formas socialmente aceitáveis", atira Paula Cristina Martins. Os pais, a escola, os alunos devem perceber que comportamentos destes não são aceitáveis. "Quando o bullying ocorre, ninguém o pode ignorar. Os colegas, por exemplo, não o podem permitir, devem denunciar. Não pode ser desvalorizado por ninguém. Não é uma brincadeira. Tem consequências", reiterou D'Jamila Garcia. No caso do Leandro, a consequência foi a morte. Não pode ser permitido assobiar para o lado. Incluir a escola, os pais, os alunos nesta discussão é imperativo, bem como dar-lhes os meios e a autoridade para desempenharem os seus papéis. Importará, obviamente, prevenir o futuro, atribuindo a todos os intervenientes apoio. E responsabilidades. Mas importará demonstrar, também, e desde já - porque morreu uma criança - que comportamentos destes não são toleráveis. Mesmo que quem os tenha sejam os nossos filhos. Que não é possível branquear a troça, a ridicularização e as humilhações repetidas. Porque podem levar à morte de outrém. Como no caso do Leandro. Que tinha 12 anos. Apenas.
Adaptado de um artigo do Jornal de Notícias